O Flamengo divulgou o seu balancete semestral, consolidando os resultados do 1o semestre de 2017. Os resultados são muito bons e superam, inclusive, as expectativas mais otimistas.
A arrecadação bruta foi de mais de R$ 400 milhões em apenas meio ano (R$ 409 milhões, na verdade). Dito assim já espanta, mas vamos colocar o tema em perspectiva: em meio ano o Flamengo ganhou mais do que no ano inteiro de 2015, quando tinha arrecadado R$ 339 milhões. Em meio ano, o Flamengo ganhou mais que o dobro do que no ano de 2012, quando faturou R$ 198 milhões. Em 2017 o Flamengo ganhou 4 vezes mais do que no mesmo período em 2013.
O parágrafo anterior elimina qualquer análise convencional, parecidas com as tantas que já fiz em outras oportunidades. O que pode ser dito depois de números tão avassaladores? O desafio muda de direção. Já não faz mais tanto sentido listar o superávit (ok, estupendos R$ 167 milhões), que o endividamento cai de forma acelerada ou que os patrocínios já são mais do que o dobro de 2013, primeiro ano da Caixa. Agora, é preciso começar a destacar os aspectos menos comentados.
Por exemplo, o Patrimônio Líquido.
Se você tem alguma familiaridade com conceitos contábeis pode pular esse parágrafo e o próximo , porque vou explicar com didatismo primário. Um balanço patrimonial tem 2 colunas, a coluna do ativo e a coluna do passivo. Na coluna do ativo, ficam todos os bens e direitos. Na coluna do passivo, ficam todas as obrigações. A diferença entre ambos é o patrimônio líquido, ou seja, aquilo que pertence aos donos da instituição. Uma instituição saudável precisa possuir patrimônio líquido positivo. Se uma instituição possui patrimônio líquido negativo (conhecido como “passivo a descoberto”), é sinal de que ela não tem condições teóricas de honrar seus compromissos e que precisa de injeção de capital para seguir de pé.
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Por si só, a existência de um patrimônio líquido negativo não é sinônimo de uma instituição quebrada, mas certamente uma longa sequência de déficits, que a cada ano aprofundam o descompasso entre os ativos e as obrigações, resultará na insolvência definitiva da instituição. Uma empresa comum não sobreviveria a esse ciclo desastroso.
Os torcedores se preocupam muito com o tamanho da “dívida” do clube, mas eu não considero esse indicador tão decisivo. Ter dívidas não é tão ruim quando se tem dinheiro para pagá-las. Agora, ano após ano, acumular prejuízos e ter cada vez menos capacidade de honrar os compromissos é muito assustador.
Em 2007 o Flamengo tinha um patrimônio líquido negativo de cerca de R$ 45 milhões, que representava metade de sua arrecadação bruta de cerca de R$ 90 milhões. 7 anos depois o cenário era de terra arrasada, o Flamengo tinha um PL negativo de R$ 423 milhões, mais do que o dobro de sua receita.
Como em 2014 pela primeira vez em muitos anos o clube foi superavitário, começou-se a especular em que momento o clube passaria a ter um patrimônio líquido positivo. Obviamente só um longo ciclo superavitário tamparia o enorme buraco. A minha projeção era de que em 2021 o PL seria positivo, a partir de 6 anos com um superávit médio de R$ 60 milhões ano após ano. Mas era uma previsão otimista, porque, vamos combinar, é muito difícil produzir um superávit tão alto em um segmento com tamanha pressão para o afrouxamento da austeridade e responsabilidade orçamentária.
E de repente tudo mudou.
Em 30/06/2017, 4 anos e meio antes do que acreditei, o Flamengo passou a ter Patrimônio Líquido positivo – de R$ 72 milhões. Repetindo o conceito: se o Flamengo acabasse hoje, vendendo todos os seus bens, recebendo todos os seus créditos e pagando todas as suas dívidas, sobrariam R$ 72 milhões a serem divididos entre os sócios proprietários.
Como a gente chegou lá tão rapidamente?
Preciso medir as palavras, para não ser muito criticado ou enfático. Não sei se o Vinicius Jr. vai ser o novo Pelé, se vai ganhar Bola de Ouro, se vai ser titular no Real Madrid. Não sei se ele vai sequer ter uma história marcante nos meses que nos restam. Desportivamente, não quero falar nada sobre o Vinicius Jr.
Mas olhando para as finanças do clube, Vinicius Jr. é um dos mais importantes da nossa história, provavelmente O mais importante. Esse menino de 16 anos, sorriso largo, corpo mirrado, para a nossa alegria ficará marcado como o símbolo que nos tirou do cheque especial.
Foi a sua venda, em valores improváveis, que nos garantiu uma injeção adicional de R$ 146 milhões. E com ela saímos do vermelho no Patrimônio Líquido, oxalá para sempre.
Mas, paradoxalmente, essa venda fantástica é também perigosa. Porque foi se viciando em turbinar seus orçamentos com as chamadas “receitas não recorrentes”, isto é, aquelas que vem de fatos excepcionais e sobre os quais não há a certeza de que se repetirão, que outros clubes (Internacional e São Paulo, por exemplo), saíram da condição de ricos e poderosos para a condição de enrolados.
Felizmente as receitas recorrentes do clube (Cotas de TV, Bilheteria, Patrocínio) apresentaram crescimento. Nunca o clube poderá se descuidar desses itens e precisa construir seu planejamento com base nele.
E as despesas? É verdade que o Flamengo tem um elenco muito caro?
É uma verdade relativa.
Essa semana, por exemplo, o Corinthians também divulgou seu balanço. Considero útil posicionar o Corinthians como uma referência de comparação porque durante anos ouvimos a história de que nós e eles representaríamos o que Real Madrid e Barcelona representam para a Espanha, por conta das cotas de TV, mas de repente se criou um consenso de que, “quebrado”, o Corinthians agora tem um time “barato”.
Nada disso está certo. Corinthians e Flamengo nunca serão tão maiores que seus rivais, o Corinthians não está quebrado (embora acelere seu endividamento, tem alto potencial de arrecadação e, por exemplo, seu PL nunca foi negativo e ainda é umas 4 vezes maior que o nosso) e seu time atual, olhem só, custa apenas 6,22% a menos do que o nosso na soma de gastos mensais com salários e direito de imagem.
O gasto mensal do Flamengo, portanto, é mais ou menos semelhante aos de seus principais competidores, ao contrário do que o senso comum acredita.
Onde realmente o investimento cresceu foi na aquisição de direitos federativos. O Flamengo vinha sendo econômico na contratação de atletas. De 2013 para 2014, por exemplo, os ativos do clube com direitos de atletas cresceram apenas R$ 5 milhões. E agora, em 6 meses, esse crescimento foi de R$ 59 milhões. Berrío, Renê, Rhodolfo, Everton Ribeiro, todos vieram por aquisições.
Novamente comparando com o Corinthians, aí o nosso gasto realmente, é maior, já que eles investiram R$ 25 milhões. Mas ainda assim não é uma diferença abissal, principalmente quando a gente se lembra que um time não se forma em meses, mas sim em investimentos que duram 2 a 5 anos.
O que falta, de verdade, é que toda essa evolução financeira encontre seu correspondente dentro das 4 linhas. Nisso aí, convenhamos, o Flamengo segue devedor.
Apesar disso, uma leitura menos contaminada pela emoção sugere que o salto para valer é muito recente, daí porque talvez o verdadeiro desajuste não esteja nos resultados alcançados, mas sim na expectativa que criamos logo ao primeiro sinal de que o sol voltava a brilhar. O tempo, sempre ele, agora joga a nosso favor. A escalada do clube está apenas no seu estágio inicial. Manter a determinação é que nos fará verdadeiramente poderosos.
Finalmente, a transparência! É cada vez melhor olhar os demonstrativos financeiros do clube, que evoluem em qualidade da informação disponível. Isso não significa que sejam perfeitos ou que não haja espaços para melhorias.
Por exemplo, um amigo me mostrou os demonstrativos do FC Porto. Neles é possível saber quanto o clube gastou com intermediação de atletas e quanto cada agente levou de comissão. Esse tipo de revelação permite aclarar as relações com os chamados empresários e quanto cada um deles lucrou, informação que hoje é cercada de mistérios, dando margem às especulações.
Aprende aí, Flamengo: conta pra gente nas mãos de quem foram parar os R$ 26,3 milhões pagos de comissão no 1o semestre (R$ 19 milhões só pelo Vinicius Jr.). Não é porque a gente é curioso e quer saber quem tá ficando rico por aí, afinal isso é da regra do jogo.
Mas é justamente porque a gente não quer ficar dando bobeira para os tititis das candinhas desocupadas e maledicentes, que na falta do que reclamar, ficam por aí procurando chifre em cabeça de cavalo. Acredite, é para o seu bem. Contar para todos vai dar menos margem para esses malas que fazem da aporrinhação o seu ofício cotidiano.
Imenso prazer de olhar esses números. Pode parecer pouco e do ponto em que hoje nos encontramos talvez seja até difícil lembrar como a gente era. Mas a sensação é parecida como adentrar o gabinete do Pezão e gritar, “Governador, a crise acabou, o senhor faça o favor de salvar a UERJ e tomar posse do Maracanã”. Parecia impossível, mas o Flamengo conseguiu.
Walter Monteiro é advogado com MBA em Administração. Membro das Comissões de Finanças do Conselho Deliberativo e do Conselho de Administração do Clube de Regatas do Flamengo. Escreve sobre as finanças do clube desde 2009, em diferentes espaços.
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