Quarta-feira, 9 de março, 22h22. O jornalista Diego Iwata Lima, do Uol Esporte, publica um vídeo no Twitter. A legenda é “1 minuto sobre o que pode fazer Pedro se tornar jogador do Palmeiras”. Infelizmente, algo normal na nossa imprensa. Afinal, não é de hoje que uma grande ala de comunicadores de veículos fazem campanha para o atacante do Flamengo reforçar o time da Barra Funda.
Contudo, em meio às diversas “opiniões”, Diego Iwata Lima conseguiu algo muito difícil atualmente. No caso, chamar atenção por falar um absurdo. Algo extremamente difícil na contemporaneidade. Por conta da enorme quantidade de boçais presentes na internet.
Geralmente, sigo a famosa frase “Stop making stupid people famous” (pare de tornar pessoas idiotas famosas, em português). No entanto, é necessário intervir em alguns casos para tentar evitar a reprodução de uma fala gravíssima e até desumana.
No vídeo de 54 segundos, Diego Iwata Lima diz o seguinte: “O Flamengo diz que não negocia o Pedro. Mas regime escravocrata acabou. Há um contrato a ser cumprido, mas ninguém vai ser obrigado a cumprir um contrato”.
Por favor, Diego Iwata Lima, entenda o que é um regime escravocrata
Em 2008, um trabalhador resgatado no Pará foi torturado 60 vezes com ferro quente de marcar gado, isto é, um objeto para marcar uma vaca como propriedade de alguém. As marcas estavam no rosto, nas pernas, nos braços. Isso é trabalho escravo.
Outro trabalhador, de 17 anos, também no Pará, fugiu de casa para buscar um trabalho que sustentasse a alimentação da esposa e da filha. Ele perdeu um dedo enquanto cortava madeira. Isso para esvaziar uma terra de criação bovina. O veneno, utilizado para o desmatamento, destruiu a mão dele. Ele não usava luvas. O mesmo aconteceu com os pés, porque ninguém lhe deu uma bota. Não havia o mínimo cuidado com a salubridade do trabalhador. Isso é trabalho escravo.
Francisco, de mais de 70 anos, cozinhava para todos os empregados da fazenda. Ele lavava roupa, tomava banho e lavava objetos na mesma poça de água todos os dias. A água nunca era tratada. Era um ambiente podre, insalubre. Ele já podia estar aposentado, mas não sabia dos seus direitos. Isso é trabalho trabalho.
Maria e os vários filhos vieram para São Paulo para fugir da pobreza da Bolívia. O objetivo era mudar de vida na metrópole mais rica da América Latina. No entanto, ela e a prole mal viam a luz do dia. Isso porque eles acordavam e iam juntos para a máquina de costura. Isso é trabalho escravo.
Pedro, de 13 anos, não sabia a data de aniversário. Ele cortava itaúbas e outras árvores grossas que nem dois homens conseguiriam cortar. O pré-adolescente enfrentava sol, chuva, malária e outras doenças. O Ministério do Trabalho resgatou o menino no dia 1º de maio 2003, data esta que ele também não sabia o que se comemorava. Isso é trabalho escravo.
“Negrão Maranhense” é o pseudônimo de um cadáver encontrado em uma fazenda. Ninguém sabia quem era ele, ninguém tinha documentos dele. Ele se foi como chegou à terra: como um indigente. Só sabiam de uma coisa: ele era um empregado. Isso é trabalho escravo.
Todos os casos acima foram retirados de uma palestra de Leonardo Sakamoto. Jornalista e doutor em Ciência Política, Leonardo é fundador da ONG Repórter Brasil e membro da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Além disso, ele também é colunista do portal Uol, portal para onde escreve Diego Iwata Lima.
Um regime escravocrata permite tudo isso. Sabe por quê? Porque esse modelo de trabalho permite que homens e mulheres sejam forçados a executar tarefas sem quaisquer remunerações e, muito menos, assinatura de um “contrato a ser cumprido”, conforme as palavras de Diego Iwata Lima. Além disso, o trabalhador escravizado não tem liberdade. Afinal, ele se torna uma propriedade do senhor, podendo ser comprado ou trocado.
Pedro está há anos-luz de quaisquer situações citadas acima.
O regime escravocrata de Diego Iwata Lima
Nas fotos acima, podemos ver Pedro em uma viagem nas férias. O escravo só viaja caso o proprietário determine isso. Obviamente, viaja para executar serviços forçados. Um trabalhador em situação de escravidão jamais tem férias na vida. Ele só para de trabalhar quando morre. Além de que, mesmo quando chega ao ‘descanso eterno’, corre riscos de não ter o mínimo de dignidade humana, como aconteceu com o “Negrão Maranhense”.
Pedro tem condições de trabalho exuberantemente mais dignas do que milhões de brasileiros, que nem estão em condições análogas de escravidão. O atacante do Flamengo faz parte dos 1% dos brasileiros que recebem acima de R$ 28.659,00, de acordo com o IBGE. Na verdade, ele recebe muito mais que isso. Mas o instituto não realiza pesquisas para os salários astronômicos dos jogadores do patamar de Pedro.
O camisa 21 viaja em voos fretados com o Flamengo. Além disso, ele recebe toda a segurança do clube para a manter a integridade física do atleta. Pedro é conhecido nacionalmente. Todos os dias, diversas pessoas pedem fotos, vídeo e autógrafos para o jogador. Dirigentes, torcedores e jornalistas palmeirense admiram o trabalho do atacante e, por isso, querem ele no alviverde. Enquanto isso, o trabalho escravo do “Negrão Maranhense” esteve muito longe de ser reconhecido pelas pessoas ao seu redor. Mesmo depois da morte.
Isso aqui não é uma crítica à admiração e valorização dos jogadores de futebol. Sabemos o quanto eles precisam renunciar a diversos confortos do dia a dia para exercer essa profissão. De fato, a vida do atleta, principalmente do Flamengo, também é difícil por vários fatores. A exigência de alto nível, a pressão e a exposição influenciam os jogadores, claro.
Contudo, em hipótese alguma, as condições de trabalho de um jogador, de um jornalista e de qualquer outro trabalhador — desde que tenha direitos respeitados — podem ser comparada a de um escravo em um “regime escravocrata”.
Um pedido a Diego Iwata Lima
Então, Diego Iwata Lima, por favor, não volte a comparar a situação de Pedro no Flamengo com um regime escravocrata. Nem em tom de ironia. Por mais que você queira muito o atacante no seu time, não repita essa fala sem a mínima sabedoria do que ela carrega.
Diego Iwata Lima não está ofendendo à torcida do Flamengo. Ele ofende ao trabalhador torturado com ferro de mercar gado no Pará. Ele ofende ao adolescente, de 17 anos, que perdeu o dedo enquanto cortava madeira. Ele ofende ao seu Francisco, de 70 anos, que fazia higienes básicas em uma mesma poça podre todos os dias. Ele ofende ao Pedro, de 13 anos, que trabalhava desde sempre e não sabia a data do próprio aniversário. Ele ofende ao “Negrão Maranhense” que ninguém sabe quem é. Ele ofende ao colega de portal Leonardo Sakamoto, responsável por um trabalho incrível pela erradicação da escravidão no Brasil. Ele ofende e ofendeu aos mais de 200 mil trabalhadores vivendo situação análoga de escravidão no Brasil.
Só para reforçar uma última vez: não, o Pedro não vive uma situação análoga à escravidão no Flamengo. E não, o “regime escravocrata” não acabou. Então, Diego Iwata Lima, por favor, liberte-se dessa escravidão intelectual que te cerca naquele vídeo.