“Toda vez que o Flamengo vence/ Tem sempre um nhem nhem nhem/ O Flamengo (…)/ Não pode ganhar de ninguém” (Flamengo e Mangueira, Bezerra da Silva)
Saudações flamengas a todos,
Domingo passado o Flamengo goleou o Corinthians por 3-0, em partida disputada na Ilha do Urubu, válida pela 36ª Rodada do Campeonato Brasileiro. As duas equipes atuaram com desfalques. Todos os gols foram marcados na primeira etapa.
Jogando de forma concentrada, agressiva e com aplicação tática, o Rubro-Negro não teve dificuldades para se impor ao adversário. Após desperdiçar algumas oportunidades, abriu o marcador com Mancuello. Manteve o controle da partida e chegou ao segundo gol com Diego, em cobrança de pênalti sofrido por Geuvânio. Com a vantagem de dois gols, a equipe recuou um pouco e cedeu campo ao adversário, que chegou a criar algumas chances em bola parada. Mas, num erro na saída de bola corintiana, o Flamengo definiu o jogo com Felipe Vizeu. Na segunda etapa, o Flamengo administrou o resultado, mantendo a partida sob controle.
Um fato inusitado se deu ao final da primeira etapa, quando, após Diego Alves espalmar a mais clara chance de gol do Corinthians até então, o zagueiro Rodolfo e o atacante Vizeu iniciaram uma áspera discussão e por pouco não foram às vias de fato. Na sequência, após marcar o terceiro gol, o jovem centroavante fez um gesto obsceno para o defensor, o que prolongou a confusão, resolvida no vestiário.
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A narrativa acima possui caráter denotativo, buscando descrever de forma sucinta o que aconteceu na Ilha do Governador na tarde do último domingo.
No entanto, quem procurou por detalhes objetivos que tentassem detalhar a escovada que o Flamengo aplicou no alvinegro paulista provavelmente encontrou severas dificuldades em seu intento, tal a plêiade de senões, “veja bem” e adjetivos vociferados por quase toda a unanimidade da crônica esportiva e mesmo das redes sociais.
Porque, segundo os relatos dos torcedores de microfone que se dedicaram ao esforço hercúleo de transformar suas deblaterações em senso comum, o jogo de domingo foi “atípico”. “Estranho”.
Sigamos.
A começar pelo fato irretorquível de que o visitante atuou com um time “misto”. Com efeito, os paulistas não levaram a campo os dois laterais, dois meias e um meia-atacante. Fato, que não deixou de ser explorado em notas como “Flamengo bate mistão corintiano”.
O problema é que o Flamengo também usou um time misto, desfalcado que estava da dupla de zaga titular, dos dois pontas e do atacante. Cinco baixas, tal como o adversário.
Donde, a tese de que o Flamengo derrotou um adversário “enfraquecido” é fulminada na origem.
A seguir, adentra-se pela seara da briga entre Rodolfo e Vizeu. Evento periférico, ocorrido com o placar já encaminhado, que ensejou pruridos ruborizados de cronistas que dedicaram fartos minutos em longas arengas sobre o ocorrido, dedos apontados aos atletas, tratados como párias, inimigos do bom desporto.
O cinismo dos derrotados.
A ênfase ao “time misto” ou ao bate-boca escolar teve, tem e ainda seguirá tendo a única finalidade, o único fito de amaciar, dourar, encobrir, empanar e, em último caso, embotar a inapelável, a emblemática, a inescapável surra que o Flamengo aplicou no Corinthians, menina dos olhos da grande crônica esportiva, muito por conta de sua localização geográfica, com três gols em 45 minutos, amassada que provavelmente não ganhou contornos mais amplos por conta de outras questões (desgaste, jogo decisivo na quinta-feira, fim de temporada).
Todas as vezes que o Flamengo extrai um feito digno de nota, que se erige à altura de sua expressão, que irrompe em aguda demonstração de força, pipocam vozes e ganidos estridentes que, arrogando-se o preceito de magistrados dos fatos, perscrutam a mais tépida evidência de pretensa irregularidade que tenha, em sua visão, desviado o evento esportivo de seu curso normal, qual seja, o revés flamengo. Com efeito, um Flamengo derrotado, batido, represado, combalido, está no lugar natural das coisas. Dos desejos saciados. Dos ânimos adocicados. No entanto, erga-se um Flamengo pujante, de clava pesada, predador, pronto a exercer seu papel natural de protagonista, logo se derramará em nervoso desespero uma jarra de lamúrias, subterfúgios, quizílias e outras mumunhas diversionistas. Qualquer um pode ganhar, conquistar, golear, ser temido, admirado, exaltado, enaltecido.
Menos o Flamengo.
E aí sobrevém uma das mais abjetas pragas desses tempos modernos. Que é até antiga, mas à qual ultimamente se tem recorrido à farta, qual recurso renovável, inesgotável.
A relativização.
A relativização está nas menores coisas. Goleamos o Corinthians, é porque estavam com reservas (embora também estivéssemos). Goleamos o San Lorenzo, é porque estavam sem ritmo (embora nenhum outro argentino tenha sido goleado na mesma rodada). Ganhamos do Cruzeiro, é porque estavam desinteressados (embora dias antes tenham arrancado um empate do superestimado Palmeiras).
Ano passado, vencemos o Fluminense por 2-1 em um jogo-chave para a disputa do Brasileiro, já em sua reta final. Houve um lance polêmico, em que o árbitro decidiu voltar atrás após validar um gol irregular do adversário já nos minutos finais, o que decretaria o empate, mesmo com o auxiliar tendo anotado, corretamente, o impedimento do atacante. A atitude do árbitro ensejou vozes furiosas clamando pela anulação do jogo, arguindo a imoralidade intrínseca à invalidação de um gol em impedimento. Esse ano, algo parecido ocorreu na Vila Belmiro, quando o árbitro, numa partida entre Santos e Flamengo pela Copa do Brasil, voltou atrás numa marcação de um pênalti inexistente contra o rubro-negro, o que provocou reações ensandecidas e discursos impolutos clamando pela moral e pela necessidade de “limpeza” no futebol brasileiro, “esquecendo-se” de que tal prática, relativamente recorrente, beneficiara o próprio clube santista poucos dias antes, numa partida contra o Bahia.
O casuísmo do discurso guardado na gaveta. Usar quando convém.
Não que sua origem seja recente, repita-se. Afinal, o Flamengo foi Campeão Mundial porque o Liverpool “jogou com reservas” e seu goleiro “estava na gaveta”. Ganhou uma Libertadores “sem argentinos” e por causa “do Wright”. Ganhou 1980 “no apito do Aragão”, 1982 “na bola de mão do Andrade tirada de dentro do gol”, 1992 “no suborno de dois botafoguenses”, 2009 “na entregada de Grêmio e Corinthians”, seu primeiro tri foi “na falta do Valido”, o segundo tri porque “o Tomires quebrou o Alarcón”, o terceiro tri “não foi tri, porque 79 foi virada de mesa”. Sem falar de 1987, do rebaixamento inventado… Ilações estridentes e risíveis, escancarada e impiedosamente desmentidas pelos fatos. Mas danem-se os fatos, diria o Velho Nelson. O que importa não é o que aconteceu. Mas o que se gostaria que tivesse acontecido.
Entretanto, o grande, o terrível, o corrosivo problema se dá quando a nossa gente começa a replicar esse tipo de discurso.
Sabe-se que o Flamengo vive um grave momento de crise de identidade. Uma aparentemente insanável incapacidade de gerar um ciclo sustentável de glórias e vitórias, muito por conta de escolhas equivocadas e da própria inépcia do clube em entender seu papel institucional diante de sua torcida. Que os resultados recentes, examinados a cru e a nu, são banhados de uma inaceitável mediocridade que o submergem a uma estatura incompatível com a expressão que o clube já deveria estar exibindo no cenário nacional e, por que não, continental. Que o rubro-negro recusa-se a queimar navios em busca da irrenunciável briga por títulos e conquistas. Que reluta em estender as mãos ao seu torcedor. E isso traz revolta. Inconformismo. Um sentimento amargo, uma sensação de negação e descrença. Uma profunda rejeição.
No entanto, com tudo isso, há que se vestir de cautela antes de espancar e apedrejar os fatos. A lente do negativismo é tão ou mais nociva do que a dócil aceitação de tudo o que emana do clube e de seus paredros.
Donde, se goleamos, se classificamos, se conseguimos uma vitória expressiva, que as saudemos. Que as desfrutemos. Que as esfreguemos nas frontes de quem as mereça. Que nos divirtamos. E que, saciados, tornemos a nos inserir e a nos posicionar no contexto que nos cerca. Opinando, elogiando, criticando, defendendo, atacando, pressionando. Pressionando muito. Fazendo valer a nossa voz. Uma voz que, por grossa, tem o condão de sacudir, de reverberar, de fazer sair da letargia os acomodados, os conformados, os que não entenderam a dimensão de defender as cores do nosso Flamengo.
Mas que nunca nos esqueçamos. Dirigentes, profissionais, jogadores, treinadores. Todos esses passam. Dão suas contribuições e são substituídos. Todos. Mas o Flamengo, a instituição, o clube, o Flamengo jamais deixará de ser o nosso foco. O centro da nossa visão. Do nosso ardor. Do nosso amor.
Porque, independente de nomes, um Flamengo forte e vencedor é o que nos interessa.
E apenas a nós.
Boa semana a todos.
Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo. Siga-o no Twitter: @Adrianomelo72
Imagens do post e das redes sociais: Reprodução, Gilvan de Souza / Flamengo.