Caro leitor, em algum momento da sua vida, você já leu ou ouviu algo que sintetizava tão bem aquilo em que você acredita e fala há tanto tempo que chegou a lhe dar inveja de não ter sido você a dizer exatamente aquilo?
Betsul 5 de 5 |
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Comigo, isso ocorre com muito mais frequência do que eu gostaria, talvez pela minha personalidade ser mais analítica do que sintética na maior parte das vezes. E voltou a acontecer com um post do usuário @fred_perezzz do X, antigo Twitter. Nele, o autor fala sobre um dos grandes erros da história recente do Flamengo: abrir mão de Everton Ribeiro.
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Minha oposição a essa ideia infeliz só encontra similaridade nas minhas posições a respeito da demissão de Dorival Júnior em 2022 e no atual desdém que parte da torcida tem para com Gabriel Barbosa. Para alguns, isso é “colocar jogador acima do clube”. Mas, na verdade, é apenas interpretar a realidade de maneira factual, requerendo sempre dados para embasar opiniões.
Vejam bem, boa parte dos argumentos usados para defenestrar jogadores é impossível de se comprovar factualmente. Vamos ao exemplo de Everton Ribeiro, que motivou o post que gerou este artigo. Muito se fala em “ciclo encerrado” como motivo para o meia não render mais no Flamengo e agora ser pilar de uma boa equipe do Bahia. Mas como se quantifica um ciclo encerrado? Qual é o medidor disso? Existe um “ciclômetro”? Não há. O que existem são números de desempenho e de contexto.
Mas se eu não consigo comprovar o fim de um ciclo, também não consigo comprovar que esse ciclo não acabou, simplesmente por falta de objetividade na análise. Se você não tem isso, também não tem nenhuma responsabilidade nos resultados obtidos a partir da sua decisão.
Não importa se, em algum momento, o Flamengo teve que colocar garotos para estrear no meio-campo em jogos importantes enquanto Everton Ribeiro entrava em campo por outro time. O ciclo havia se encerrado. Não há o que fazer.
Há ainda um refúgio dos que defendem essa tese. Eu costumo chamar de “complexo de Real Madrid”. O argumento “se o Real Madrid não tivesse sabido encerrar ciclos como os de CR7 e Sérgio Ramos, não estaria tendo o sucesso que tem” parece muito inteligente, não?
Afinal, são dois jogadores incríveis que o clube abriu mão, trazendo outros nomes para seus lugares. Ignora-se, porém, que ambos os jogadores estavam em declínio (como demonstrado nos clubes seguintes) e que esse mesmo Real Madrid manteve Kroos e Modric com idades avançadas.
Não foi “ciclo encerrado” que tirou CR7 e Sérgio Ramos do Real Madrid, mas uma avaliação criteriosa do que aqueles dois ainda poderiam render para o clube. Concluiu-se que era melhor abrir mão deles do que renovar. O contrário do que se concluiu em relação à dupla de meio-campistas que continuaram a desempenhar grande futebol. E foi uma escolha acertada de quem provavelmente entende muito de futebol.
E é por isso que essa análise precisa ser feita com cautela, ceticismo e parcimônia. Levando em consideração aquilo que nós já confirmamos empiricamente que é verdadeiro: uma postura conservadora diante do estado das coisas.
É um fato empírico, constatado por anos, que Everton Ribeiro é um dos meias mais habilidosos da sua geração no país. Também é um fato empírico que ele não sofre com muitas lesões. E mais ainda que a operação para repor um jogador desse nível custaria uma quantia enorme.
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E custou. Muito se falou em De La Cruz sendo o substituto do camisa 7, e ele custou 18 milhões de dólares à vista. Mas abordaremos isso mais à frente. E ainda assim foi feita a aposta: uma aposta arrojada de abrir mão de algo comprovadamente bom, em nome de um argumento que não encontra nenhum lastro na realidade. Só um lugar-comum repetido à exaustão: “o ciclo encerrou”.
É claro que, às vezes, decisões tomadas no “feeling” podem trazer bons resultados. Mas isso deve-se, usualmente, a dois fatores. Um deles é a sorte, que é basicamente o que se deve todo o sucesso da administração Landim. O outro é a excepcionalidade do tomador da decisão. Existem aqueles que são gênios, que veem aquilo que a maioria de nós não consegue enxergar. Mas sinto lhe informar, leitor, você provavelmente não é uma dessas pessoas.
Braz não é, Landim não é, Spindel não é. Assim como eu não sou. Porque esses são raros. E por isso não podemos contar com essa genialidade na maior parte do tempo. Eu tenho certeza de que, para boa parte da torcida que endossou a saída de Everton, a contratação de De La Cruz parecia suprir qualquer buraco deixado pelo então camisa 7.
O que esses jamais fizeram foi olhar para os fatos e ver que, por exemplo, o uruguaio nunca jogou mais de 40 jogos em uma temporada, enquanto só nessa Everton já fez mais de 50. Isso sem falar no futebol apresentado.
E veja bem, as testemunhas do “ciclo encerrado” não são os únicos a usarem “bruxaria” no futebol do Flamengo. Também há aqueles que justificam mau desempenho com o famoso “falta de vontade” em alguns jogos, que fez com que Gerson (um dos melhores jogadores do time na temporada) fosse chamado de “gersoneca” no início do ano. Também existem aqueles que se dizem aptos a julgar se o jogador está com “a barriga cheia”.
No fim, isso é só a versão futebolística da visão supersticiosa que o brasileiro médio tem. E essa superstição, se colocada na tomada de decisão, pode levar a consequências catastróficas. Nos trouxe dois anos péssimos para o Flamengo. Tudo isso porque medíocres acharam que era fácil fazer o genial, resultando assim no expurgo do gênio pelo medíocre.
Torcedores acostumados a ter jogadores do mais alto nível acharam que esse nível se encontraria em qualquer esquina. Mas a realidade é que não. Você não encontra um Everton Ribeiro em qualquer lugar, não encontra um Gabigol em qualquer lugar. Olhe para a atual sensação do futebol brasileiro: Botafogo.
Seus centroavantes são Igor Jesus e Tiquinho Soares, que nunca em sua vida tiveram uma temporada como 2019-2020 do Gabigol. Olhe para os meio-campistas deles. Nenhum deles tem a qualidade de Everton. Eles são bons, ou até muito bons, mas bons dentro da “normalidade”, enquanto o que nós tivemos era acima disso. E vocês lutaram para destruir.
Renato Veltri é advogado, formado pela UFRJ em 2019 e flamenguista formado por sua irmã, Vanessa, na final da Copa do Brasil de 2006. Twitter: @veltri_renato.
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