Na eminência da demissão de Paulo Sousa, o nome de Cuca aumenta nas listas de especulações da internet e entre os jornalistas mais bem informados sobre as pretensões da diretoria rubro-negra, às voltas com outra crise advinda da sua falta de competência.
Cuca é um treinador com alta rejeição. O simples fato do nome ser cogitado, mostra o quanto vivemos uma crise de identidade. Em 2009, o técnico idolatrado por palmeirenses e atleticanos foi escorraçado do Flamengo após inúmeras situações constrangedoras, como pedir para seu irmão-assistente Cuquinha ouvir a conversa de jogadores atrás da porta, como noticiou reportagem de Caio Barbosa, no Extra.
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“Segundo os jogadores, Dirceu Stival, irmão de Cuca e ex-auxiliar, foi pego por integrantes do departamento de futebol com ouvido na porta de uma sala do vestiário onde havia uma reunião dos atletas, revoltando o time. Antes disso, os jogadores também estranhavam o fato de Cuquinha sempre fazer questão de entrar numa roda de conversa para saber o tema.”
Porém, não é apenas a primeira passagem de Cuca pela Gávea que depõe contra o treinador em grande parte da torcida do Flamengo. Pesa sobre o treinador que capitaneou o episódio do chororô botafoguense, as sombras de um horrível ato do passado, ainda de quando era jogador do Grêmio.
Em outubro de 2020, o perfil @usebrusinhas postou no Twitter minucioso trabalho de pesquisa sobre o estupro coletivo ao qual o possível substituto de Paulo Sousa foi acusado de participar. O fio rapidamente viralizou devido à riqueza de detalhes e abaixo segue a transcrição completa.
Cuca e o estupro coletiva no Hotel Metropole
Em 1987, uma multidão de gremistas e colorados lotou o saguão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, pra recepcionar com entusiasmo uma pequena comitiva de quatro reservas do Grêmio que estavam voltando da Suíça. O motivo mostra como o Brasil tem orgulho do seu machismo.
O Grêmio era pela terceira vez consecutiva campeão gaúcho. Próximo passo: cruzar o Atlântico em excursão para a Philips Cup, na cidade de Berna, Suíça. De cara, o Grêmio venceu o Benfica, de Portugal, impressionando pelo segundo ano seguido a garota Sandra Pfäffi, de 13 anos.
Como no ano anterior, Sandra decidiu visitar a delegação do Grêmio que estava hospedada no Hotel Metropole. Acabou batendo de forma aleatória no quarto 204. Foi atendida. Lutando contra a barreira do idioma, tentou comunicar que gostaria de ganhar uma camiseta como souvenir.
Do outro lado da porta estavam os reservas do Grêmio Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, que convidaram os visitantes a entrar, tentaram manter uma comunicação por grunhidos e gestos sem sucesso.
A situação chamou a atenção de Henrique Etges e Alexi Stival, conhecido como Cuca. Ao verem a movimentação no quarto, entraram. Fecha-se a porta. Sandra foi estuprada dentro do quarto no que os jogadores consideraram uma orgia. Jogaram-se sobre ela, imobilizaram. Dois homens a violaram, enquanto outros dois a acariciavam e seguravam.
Após 30 minutos de terror, Sandra foi à polícia e a equipe, aos treinos. Henrique e Eduardo foram presos na noite de quinta-feira. No dia seguinte, toda a delegação do Grêmio foi convocada pra reconhecimento dos demais envolvidos através de um espelho falso.
E assim estavam presos na Suíça, sob a acusação de estupro, os reservas gremistas Henrique, Eduardo, Cuca e Fernando, cada um em uma cela distinta e incomunicáveis – exceto por advogados – até o fim do inquérito, conforme a legislação do país.
Comitivas, advogados, Itamaraty, Embaixada, até João Havelange, à época chefão da FIFA, foram tentativas de intervir sem sucesso para livrar os rapazes entre 21 e 24 anos. O chefe da delegação insistia em dizer que foi um mal entendido pela barreira da língua que causou a situação.
A legislação da Suíça proibia relação sexual com menores de 16 anos. Crime sério. A denúncia de estupro, então, dispensa qualquer tipo de comentário em relação à gravidade.
O fato ganha destaque no noticiário internacional, respeitando a identidade da vítima. No Brasil, com especial destaque nos jornais gaúchos, foi dada abertura a palpites, comentários e achismos diversos, porém quase unânimes na defesa dos jogadores.
Presos, os jogadores estavam incomunicáveis até o término do processo, o que poderia durar até 30 dias. Não tinha como obter informações ou qualquer tipo de privilégio na Suíça, pois o sigilo judiciário lá é quase hermético.
Um embaixador da Suíça teve acesso às acusações e de fato, disse que eram gravíssimas. Entretanto, a menina, que até então tinha 13 anos, passa a ter “14 anos incompletos” que logo, por comodismo de discurso, viraram 14 anos. Para os jogadores, a idade era outra: 18. Parecia 18.
Foi dito que Sandra entrou no quarto dos rapazes e começou a tirar a roupa, se oferecendo. Quem afirmou foi o China, titular do time que já conhecia a menina da excursão do ano anterior. Ela estava tentando tirar a blusa que usava na hora para trocar por uma camisa do Grêmio.
A família também era entrevistada, afirmando que os jogadores seriam incapazes de fazer isso. Muito se falou sobre a índole impecável dos quatro. Aliás, se isso aconteceu mesmo, a culpa é da menina, que não deveria se meter no meio de quarto marmanjos assim.
Quase ninguém acreditava que eles tivessem estuprado a garota. Afinal, era uma “mocetona”, conforme expressão da época. A teoria difundida que ela havia se oferecido para orgia, pois no dia seguinte estava com uma camisa do Grêmio vendo um jogo.
Diziam também ela já tinha transado antes e com o namorado, que estava com ciúme do que aconteceu no quarto 204 e foi enganado com a história do estupro. Na imprensa brasileira, informavam que jovens europeias têm vida sexual ativa muito cedo, inclusive tomam pílula desde novas.
Para provar que era uma “mocetona” o fotógrafo Paulo Dias, do Zero Hora, fez de tudo pra tirar uma foto da menina, apesar do sigilo da sua identidade. Conseguiu pegar ela na saída da escola com a mãe. Quase apanhou de uns suíços no ato pela falta de respeito de fotografar uma menor.
Tentou vender a foto pra imprensa europeia, mas não conseguiu. Em compensação, a foto foi destaque no jornal O Globo e Jornal do Brasil. O repórter que o acompanhava conta, aos risos, que também chantageou um repórter pra obter o nome completo da Sandra.
Depois de 28 dias presos, os jogadores foram liberados. Pagaram fiança e uma indenização à garota. Depois foram condenados, mas nunca cumpriram a pena. Os rapazes podem circular por aí livremente, como estão até hoje. Basta não pisarem na Suíça.
Após saírem da prisão, os rapazes admitiram sua culpa. Eles estavam muito envergonhados. Saíram da Suíça com medo da recepção, de como seriam julgados após 28 dias incomunicáveis. O horário do voo pra Porto Alegre foi escolhido a dedo para evitar a imprensa.
De fato, mal sabiam o que esperava os “Doces Devassos”, apelido que a imprensa esportiva gaúcha deu para os rapazes: um grupo de 500 pessoas entre imprensa e torcedores colorados e gremistas ocupava o Salgado Filho. No topo, as bandeiras do Inter e do Grêmio unidas.
O clima no desembarque era de festa. Envergonhados e pedindo desculpa, os jogadores do Grêmio demoraram para entender o que os gritos ensurdecedores de “PUTA, PUTA, PUTA!!!” e seu real significado. Eles eram heróis. Vítimas solitárias. Machos.
Depois, a retomada. Fizeram ensaio de foto, entrevista de heróis sobreviventes. Vítimas. Só voltaram a ser notícia quando saiu a condenação na Suíça. Seguiram jogando no Grêmio, já que a diretoria recebeu milhares de cartas pedindo pra que os garotos não fossem punidos.
Só precisaram pagar as custas dos advogados, processo e indenização mensalmente para o Grêmio.
Hoje, Cuca é treinador de um dos maiores times do país, o Santos, e teve passagem em diversos clubes no Brasil e no exterior.
Sandra teve depressão e tentou suicídio aos 15 anos.
O MRN destaca que a condenação de Cuca não foi relacionada a estupro ou abuso, mas sim à prática de ato sexual com menor de 16 anos, proibida na legislação suíça.
Diogo Almeida é editor do Mundo Rubro Negro. Gosta de escrever teses não convencionais sobre o Flamengo. Siga no Twitter.