Parece que muitas vezes esquecemos que um time de futebol é formado por onze seres humanos. E seres humanos não nascem com uma etiqueta de identificação das suas qualidades, muito menos de sua posição ideal dentro de um campo de futebol.
Ninguém nasce zagueiro.
Alguns se sentem mais à vontade jogando de costas, outros preferem receber a bola de frente, outros têm mais velocidade na arrancada, mais agilidade ou força. Há aqueles que têm uma ótima capacidade para organizar a defesa, e também aqueles com ótima leitura de espaço.
O jogador de futebol é um aglomerado quase infinito de características. Algumas mais visíveis, outras mais sutis. Só no Elifoot o homem já nasce com uma posição fixa e ponto final.
Questione, por exemplo, o que é um zagueiro?
Os times tendem a defender com mais gente na faixa central. Afinal, é onde está o gol. Assim, existe mais espaço para atacar pelos corredores laterais. Se você chega perto da bandeirinha de escanteio, a opção para finalizar a jogada é um cruzamento na área. Para aproveitar esses cruzamentos, estabeleceu-se que o jogador mais avançado do time precisava ter boa capacidade no jogo aéreo.
Não existe nenhuma regra dizendo que o centroavante deve ser alto e forte. Ninguém nasce centro-avante. Pessoas com essas características ocupavam essa função para aproveitar melhor a maneira como se jogava.
A resposta óbvia? Zagueiros também precisavam ter boa estatura e porte físico para disputar essas jogadas pelo alto.
Mas no fim dos anos noventa surgiu um rapaz chamado Ronaldo. Apesar de relativamente alto e forte, o atacante era ruim de cabeça. Sua principal arma era a velocidade. Ronaldo aterrorizava as defesas adversárias correndo atrás da bola.
Tudo isso aqui é um exercício de simplificação, claro. Ronaldo não foi o primeiro atacante rápido da história, muito menos o primeiro fora do padrão. Uma década antes, Romário já era uma aberração.
Mas uma geração inteira de atacantes viveu assim. Owen, Anelka e Saviola são exemplos. Os zagueiros gradalhões e lentos eram presas fáceis para seres humanos tão velozes.
Para enfrentar aquele tipo diferente de atacante, os zagueiros precisaram mudar. Outras características eram necessárias.
Ninguém nasce zagueiro. Certas características serviam para zagueiros pela maneira como se jogava.
Formação e posicionamento
Quantos jogadores você precisa ter alinhados para proteger um setor? Hoje em dia, a largura do campo é, geralmente, de 68 metros. Se houvesse apenas dois jogadores na sua última linha de defesa, a distância entre eles seria grande demais e apareceriam buracos enormes. Seria impossível organizar qualquer cobertura.
Por outro lado, se o treinador quisesse fechar todos os espaços entre os defensores, poderia formar uma linha de oito jogadores, numa espécie de barreira de handebol. Mas, dessa forma, o time daria muito espaço para o adversário avançar com a bola.
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Formações táticas são a busca por esse equilíbrio, sempre entendendo que futebol é um jogo de cobertor curto: você cobre um lado, mas sempre deixa o outro descoberto. Ganha numa coisa, perde na outra.
A formação depende, então, da ocupação dos espaços, não da “posição de origem” dos jogadores.
Todo mundo lembra que o São Paulo jogava com três zagueiros há pouco mais de dez anos. Mas poucos se recordam que o Flamengo também jogou com linha de três nesse período.
O motivo? O terceiro zagueiro do Flamengo era Jailton, sempre listado como volante por ser sua posição original. Era raro vê-lo à frente da defesa naquele time. Ele tinha a mesma função de Angelim: marcação encaixada nos atacantes adversários, enquanto Fabio Luciano ficava na sobra.
Aqueles seres humanos que crescem sendo chamados de volantes são, em geral, bons no combate direto, nos desarmes, antecipações e interceptações. Essas são as características importantes naquele setor. Por isso, costumam se encaixar muito bem como zagueiros nas linhas de três.
Mas ninguém quer saber do posicionamento real no campo, não é mesmo? É mais fácil embarcar no “estilo Elifoot” de análise futebolística.
Como, afinal, o Flamengo ocupa os espaços?
O Flamengo vem se organizando há muitos anos no 4-1-4-1. Ou seja, uma primeira linha de quatro jogadores, um volante especialmente ligado nas coberturas, uma segunda linha de quatro e um homem mais à frente. Houve variações recentes para o 4-4-1-1 e até mesmo 4-2-3-1.
Independente do formato, o trio de meio-campo é fundamental para fazer o time jogar. Por isso, todo rubro-negro olha para esse setor com ansiedade.
Quando se reclama do time com três volantes, o problema é a ocupação de espaços, o estilo de jogo e as características dos jogadores, não o número de jogadores com a etiqueta “volante” no Cartola.
Precisamos qualificar um pouco esse debate.
Ao discutir a possibilidade de ter Piris e Cuéllar juntos, por exemplo, deve-se fugir das frases-feitas. Coisas como “os dois jogam como primeiro-volante” ou “precisamos de um segundo-volante” ou “Cuellar não foi bem jogando como segundo-volante”. A discussão relevante é se as características que eles oferecem são ideais para que o time imponha seu estilo de jogo.
Da mesma forma, Willian Arão tem mostrado péssima leitura de espaços e um posicionamento confuso. Não pode ser titular apenas porque “é segundo volante e o time precisa de um segundo volante”.
O debate fica muito raso. Voltamos ao Elifoot.
E os quatro meias?
Por fim, uma pergunta surge em todas as discussões sobre o Flamengo atual: é possível jogar com Éverton Ribeiro, Diego, Arrascaeta e Vitinho juntos?
Muitos comparam com o Manchester City e argumentam que “Guardiola usa apenas um volante e dois meias.”
Outros dizem que isso é “time de índio.”
Nem uma coisa, nem outra. É possível, sim, ter muitos jogadores com características ofensivas, que gostam da bola e chegam no ataque. Mas é preciso entender as características de Kevin de Bruyne e David Silva. Como dominam o espaços, como fazem pressão, como apoiam…
São seres humanos com características muito diferentes de Diego e Arrascaeta, apesar de suas etiquetas especificarem claramente que são “meias”.
Além deles, os pontas e os laterais são fundamentais para fazer esse esquema funcionar.
Hoje, no Flamengo, eu diria que é impossível.
É apenas uma opinião. Podemos debatê-la. Mas vamos combinar, pelo menos, de fazer o debate sobre o que importa. O Elifoot não dá conta da complexidade da vida real.
*Créditos da imagem destacada no post e nas redes sociais: Alexandre Vidal / Flamengo